
Era um outono frio e triste. De olhos semi-fechados ela correu, num tom desesperado, até o corpo pálido de seu amigo. Ajoelhou-se e apoiou suas mãos naquele chão cinzento e sujo. Olhou a estátua mórbida que tinha virado o menino alegre que gostava de correr e jogar futebol na rua perto de sua casa. Quantas vezes eles não trocaram palavras de amor disfarçadas de ofensas e abraços calorosos mascarados de brigas sangrentas? Ele a amava. E apesar de xingá-la como num ritual diário, ele admitia sua admiração ao pedir por seus beijos sempre quando fazia algum favor a ela. E ela fazia caretas de nojo em resposta. "Nunca!" Ela dizia numa certeza sem fim. A verdade é que eles eram muito crianças para algo mais do que aventuras infantis: encontros rotineiros para roubarem frutas de uma fazenda afastada do bairro. E o romantismo era comer aquelas frutas mais do que podiam, até que uma dor de barriga os assaltasse como um ladrão oportunista. Mas era melhor do que sarrafos ao chegar em casa com comida furtada. Seus pais eram pobres, mas não ladrões.
Agora ele havia partido. E ela estava ali. Seus olhos correram sem controle pelo corpo dele, desejando que a vida se instalasse ali novamente. Pegou sua mão e chamou por seu nome. Silêncio. A morte chegou melancólica e levou a alma do garoto. Sua franja loura, que pendia para o lado, foi acertada pela menina, que chorava sem esperança. Seus lábios, molhados de lágrimas negras, se encontraram com os lábios secos e frios dele. O beijo selou uma real amizade e marcou uma triste despedida. Como ela queria um milagre... Fechou os olhos e esperou um instante. Quem sabe, quando ela os abrisse novamente, lá estaria aquele sorriso gostoso.
Mas, como havia de ser, nada aconteceu. Logo uma multidão se aproximou e ela foi afastada, se deixando levar. Não lutou contra se afastar daquela cena. Preferiu arrastar seus pés até em casa. Abraçou seu pai, o único que realmente a entendia, e deitou em sua cama. Chorou até que adormecesse de cansaço e sonhou. Com ele.
Seu melhor amigo teve o privilégio de estar nos sonhos dela, coisa que sempre desejou mas nunca conseguiu em vida. Agora ele estava em suas mente, rindo, falando besteira, jogando futebol no outro time e pedindo um beijo (insistentemente, como sempre fazia). Um sonho-despedida.
Na manhã seguinte ela acordou com a cabeça doendo e demorou uns minutos até que se lembrasse do dia anterior. "Saukerl". Era como ela sempre o chamava: um xingamento constante. Foi o que pintou mais tarde no porão junto com as outras palavras difíceis de serem pronunciadas. Ali ficou olhando aquela palavra por horas até que a fome falasse mais alto.
"Adeus, amigo."
Apagou a luz do porão como se o apagasse de sua memória. Mas aquele filete de luz permaneceu por anos e anos. Ainda bem. Um primeiro amor não deve ser esquecido tão instantaneamente.
(Inspirado no livro "A menina que roubava livros" de Marcus Zusak. Título retirado de um trecho da música 'What Sarah said' do Death Cab for Cutie).