terça-feira, 28 de outubro de 2008

Rosa desfolhada


Uma noite de lua cheia contemplava meu rosto pela janela. Era fim de semana e pacientemente eu me arrumava para sair. Ele me buscaria aqui na portaria do meu prédio. Enquanto enxugava meus cabelos pensei em nós dois. Éramos o que as pessoas definiriam como combinação perfeita, mas eu achava somente que éramos parecidos, nada de tão extraordinário. Foi com esse sentimento que desci para encontrá-lo e o cumprimentei com um beijo um pouco seco. Acho que não estava com um humor tão bom assim; desânimo é a palavra certa. Mesmo assim ele me olhou como se eu fosse a pessoa mais fantástica do planeta, o que me fez corar. Não consegui retribuir aquele olhar, e não retribuiria. Fomos passeando de mãos dadas até chegar na festa, um pouco depois do horário combinado. Meu coração estava um pouco descompassado e me aborrecia saber o porquê. Ele estaria lá. O outro ele.


Cheguei até confiante, cumprimentando a todos, tentava esconder minha insatisfação. Abracei a aniversariante, cujo vestido dançava pelo salão, desejando-lhe as coisas boas da vida. Olhei rápido ao redor e não o vi. Respirei aliviada e dei um sorriso para aquele que segurava minha mão. Escorregamos para a varanda e nos debruçamos ali, sentindo a brisa que soprava gentilmente. Estava desconcentrada e distraída, acho até que ele percebeu, mas não quis falar nada. Ele, que me conhecia quase por completo, sabia que se insistisse em alguma coisa só pioraria a situação. O que fez foi perguntar se estava tudo bem. Respondi breve que sim e pensei contraditoriamente na sorte que tinha de tê-lo ali do lado. Quando estava me convencendo do quão feliz eu era, o outro ele chegou. Com o sorriso mais perfeito de todo o mundo no rosto, e tentadoramente sozinho. De jeans preto e blusa pólo azul escuro. Será que ele tinha consciência do quão bem essa roupa lhe cabia? Senti vergonha de olhá-lo tão profundamente, tentando disfarçar todo aquele rebuliço de sentimentos que tomava conta de mim. Inevitável. Em dois minutos a brisa já não estava mais tão fresca e tudo me incomodava. A mão na minha mão me incomodava. A falta dos beijos surpresas e apaixonados me incomodava. A música repetitiva de fundo misturada com o barulho das pessoas conversando alto me doía a cabeça. O cheiro de salgadinhos fritos me embrulhava o estômago e minha sandália estava me matando. Queria correr dali. Estava descontrolada, confusa.


Algumas pessoas dizem que nunca estamos realmente satisfeitos com o que temos, e naquele momento, eu começava a acreditar nisso, quase carregando essas palavras como meu lema. A realidade é que eu não estava satisfeita com meu namoro e aquela camisa pólo azul tinha acabado de sair de um curto relacionamento. Eu juro que podia sentir seu perfume de longe, aquele cheiro de florestas primaveris. Estava enlouquecendo. Levei minha mão ao peito só para jogar meu coração para ele, que sentado à mesa não parava de me olhar. Isso não pode acontecer, disse a mim mesma, digna da moralidade de Jane Austen. Se contenha, carnalidade. Se contenha. Quase repetia isso como um mantra, na tentativa de recuperar minha sanidade. Prometi a mim mesma: Amanhã encerrarei os beijos sem sentimento e as mãos não retribuídas. Não me acomodarei numa ilusão, não é certo continuar enganando a pessoa que está ao meu lado, até porque não sei mentir bem e é uma questão de tempo ele descobrir que não é por seus abraços que suspiro. Tenho vivido por outro, meu Deus. Me entregado sem seu consentimento e chorado pelas minhas atitudes contraditórias. Chega disso. Amanhã será o dia que em que tudo isso acabará e eu paro de trair a mim mesma.


Igualzinho falei na semana passada.

5 comentários:

Darshany L. disse...

Me imaginei lendo um livro catalogado como romance, de autora inspirada levemente em Lispector.

É um elogio. :)

Ly disse...

Dica de leitura...Textos ácidos e sarcásticos, pra quem quer ficar por dentro dos assuntos políticos e dos últimos acontecimentos de forma leve.


www.mosaicodelama.blogspot.com

Boa leitura!

Lucas M. Lessa disse...

As palavras jorraram bem no papel, meus parabéns.
Um beijo.

lalalyrio disse...

iraaaado o texto :]

inspiradíssima ahn
mto mto bom

=*

Jaya Magalhães disse...

Ô, Flá!

Li esse texto há alguns dias, mas não encontrei palavras para comentá-lo. Resolvi esperar, e hoje chego aqui, e as danadas ainda me escapam. Porque acho sempre difícil isso, isso de ler e saber exatamente do que se fala. Não sei se a história é vivida por você, ou personagem. Sei que eu, já fui personagem de situação assim. A história do: “já passei ele”, e quando o coração dá um inteiro outra vez, acontece o encontro surpresa, e tudo se quebra novamente. A vida e os casos mal resolvidos. As promessas não cumpridas. E o alguém, ao lado, pra preencher o que nem se sabe.

Situação por situação, o que eu queria falar é do jeito leve como você tratou tudo. Tua escrita é singela, moça. Foi me puxando pra dentro do texto a cada detalhe bem narrado, e eu já levitava, nessa hora. Foi bonito, sabe?

Uns beijos pra você.