sábado, 2 de agosto de 2008

O inexplicável amor - por Ana Laura Nahas



"O fato é que ela gosta dele, coitada. Gosta das covinhas que ele faz no rosto quando ri, das piadas que ele repete, igual, do mesmo jeito, dos narizes que ele torce pros filmes que vê na promoção das quartas, das canções obscuras que ele põe no rádio do carro quando volta de qualquer lugar, dos medos que coleciona (o amor, as baratas e os pimentões vermelhos), da barba malfeita, das graças que ele faz com as decepções que teve, com os dias em que as coisas doeram mais do que era possível suportar.

Gosta quando ele veste xadrez e golas e botões e usa aquele par de sapatos marrons, quando telefona pra jogar conversa fora, quando chora tantos anos e saudades da infância e angústias e feridas e fotografias amareladas pelo tempo, quando passa horas tentando explicar o quatro-quatro-três ofensivo do técnico de algum time impronunciável do futebol japonês. Gosta da brancura dele e dos quilos a mais e das entradas que ele tem na testa. Até as orelhas de abano dele ela diz que acha bonitinhas.

O fato é que ela gosta dele, coitada. Gosta do azedume dele, e até quando ele diz que não suporta os vizinhos, que detesta o Botafogo, que abomina a TV Globo, que odeia berinjela, que preferia mil vezes viver numa caverna sem luz do que encarar o mundo aqui fora, suas ruas tortas, sua gente estranha. Gosta quando ele reclama dos preços do supermercado, da conta de luz, da reunião de condomínio, do joelho doente, da mãe que aluga, do pai que quer um filho que ele nem sempre quer ser.


Ela gosta. Gosta tanto que às vezes esquece que não devia gostar tanto, e em dias ímpares pensa em mandar um e-mail bonito pra ele e mandar junto uma canção que talvez encare a verdade que ela, de fígado estragado, perna flácida, unha roída, cabelo desgrenhado e coração partido, acha que não é capaz de dizer direito com as palavras.

E de tanto que gosta sonha com a tarde em que ele bateria na porta, com tudo entendido, inclusive os subentendidos, e eles assistiriam ao Seu Jorge, no Álvares, “a vida contigo é muito melhor, esqueci o medo de viver só, com você me sinto bem, contigo sou feliz também”; e brindariam o encontro e dançariam um pouco e, no dia seguinte, veriam TV e passeariam na praia. E de tanto que gosta sonha que talvez toda a mágoa de antes sumisse, que talvez todas as coisas voltassem a ser como foram um dia ou parece que foram.

Porque um dia, de alguma maneira, a vida volta a ser mais ou menos como foi ou parece que foi. Um dia, depois de um tempo, até os piores momentos se tornam mais fáceis, até os amores que acabaram, as dores que a gente guardou o mais escondido que pôde, as expectativas que se desfizeram numa noite fresca como as da última semana. Um dia a gente entende um pouco as coisas e, apesar dos tropeços do passado, abraça um amor como o dela, esse troço que ninguém explica, nem toda a teoria do mundo."



7 comentários:

Flá. disse...

ps.: ele está namorando.

Darshany L. disse...

ah flávia, nem sei o que comentar, se a crônica linda que você postou ou o seu comentário acima.
:(

;*

Flá. disse...

Ahh eu tou bem, apesar de tudo. Me surpreendo com a capacidade de meu coração se regenerar. Acho isso é obra de Deus mesmo. Tá tudo tranquilo.

rosa disse...

É.. sério, o amor é inexplicavel e inusitado.
E só é perfeito nos 'corações flexiveis', se é que eles existem..

Anônimo disse...

me encontrei aqui por acaso, resolvi deixar um oi =)
obrigada pela citação.
um beijo
ana

Anônimo disse...

ah... meu blog: www.gazetaonline.com.br/blograscunho.

Zied disse...

Ana Laura, é vc a irmã de Ana Cláudia, tia da Clarinha?
Desculpe pela demora. Eu sou o Zied Feres. Fui amigo da Aninha, mãe da Clara, e aluno dela.
Eu dizia que ensinar música é fácil, mas ensinar sensibilidade só com ela.
Soube apenas agora do falecimento dela. Não sei pque estávamos longe. Acho que ela em Vitória e eu em Vila Velha, familia, negócios e... agoar, uma dor no peito. Que pena... Clarinha era bebê ainda. Meus sentimentos. :(